terça-feira, 25 de novembro de 2008

Psst, psst, cima ou baixo? A Trofa no grande livro dos relatos secretos das pestana . 1º prémio Rosa Araújo 2008


O meu nome é Ana. Sou uma pestana, vivo na tua pálpebra, juntamente com as minhas irmãs, tias e restante família. Pertencemos a uma geração de guerreiras pacíficas, cuja missão é proteger o olho, um órgão muito especial. É que além de ser a janela para o mundo, é atrás dele que mora o mais precioso e sagrado tesouro que tens dentro de ti: a alma.



Vou passar a apresentar a minha família. A minha avó chamava-se simplesmente Ana, tal como eu, a minha mãe, Mariana e sua irmã Anete. As gémeas Ana Clara e Ana Laura, que nasceram no mesmo dia. Ananda, a mais velha de todas, caiu anteontem, num abrir e fechar. Logo surgiu a prima Anastácia e hoje mesmo nasceu a Aneliça, a mais noviça.

Anita acha-se sempre a mais bonita, Anne e Anna, com dois “enes”, sempre à espera que lhes acenes, não sabem que tal gesto pode ser fatal. Depois, há as primas Giovana, Juliana, Rosana, Ivana, Joana, Liliana, Poliana, Silvana, Tatiana, Taciana, Veridiana, Viviana...
“Psst psst, pest’Ana!”, costumamos chamar, a brincar. Claro, levantamo-nos todas, para logo a seguir nos baixarmos. Em uníssono e sempre bem alinhadas.



No total, somos cerca de duzentas e dependemos umas das outras para defender o olho, esse lugar especial onde brilha a alma. As pestanas são muito especiais, porque além de guardiãs, quando caiem, têm o poder de concretizar desejos. Para isso, só tens de entrar no nosso jogo favorito e bem conhecido, que se chama “Cima ou baixo?”.

Sabemos muitos episódios de pestanas que desempenharam papéis muito importantes na História, mas que nunca foram revelados, porque provavelmente seriam motivo de troça e desacreditados pelos homens. Estou a lembrar-me de um caso que aconteceu aqui mesmo na Trofa, onde nasci. É um relato famoso na nossa tradição, que tem sido passado de pestana a pestana e que vos vou contar.

Estávamos no ano de 1809 e reinava em França um senhor de nome Napoleão Bonaparte. Este homem tinha um plano maquiavélico: possuir todos os países, terras e povos que pudesse. Tal como os meninos brigam por brinquedos, também os homens lutam por terras e países e assim começam grandes guerras e sofrimentos que nem eram precisos.

Como era muito teimoso, Bonaparte invadiu três vezes o nosso país. Tentava entrar na nossa casa, sem ser convidado e ficar com tudo o que encontrava. Mas que falta de educação! Foi bem feito, porque acabou sempre derrotado. É o que acontece quando se tem um plano malvado. Era como querer ser dono de todos os brinquedos!



Sempre que tentava conquistar Portugal, Bonaparte enviava um general diferente, para liderar as tropas francesas. Foi quando mandou Nicolas Soult, que aconteceu um dos relatos que mais prezamos e que consta do grande livro dos relatos secretos das pestanas.

Era o dia 25 de Março de 1809 e o general, vindo de Braga, tinha decidido passar o rio Ave na zona da Barca da Trofa, para depois continuar até ao Porto. Mas Soult não contou com a força e a coragem da população, que se uniu, alinhou um exército e impediu as tropas francesas de entrar em sua terra amada, cumprindo o desejo das gentes da Trofa.

Revela o grande livro dos relatos secretos, que nesse mesmo ano, tinham nascido Anete e Judiana. A tradição exige que estas duas pestanas nasçam em olhos diferentes por serem tão opostas de feitios e personalidades.

A Anete é elegante e comedida, a Judiana, rebelde e brincalhona. Ambas bailarinas incansáveis na dança que ser pestana compromete.
Treinamos em conjunto, cima e baixo sem parar e assim, estamos sempre preparadas para qualquer tentativa de ataque. E em coro bem afinado, nos pomos a cantarolar.

“A vida da pestana é uma história de labor.
Para cima e para baixo, ao som do contrabaixo,
a elegante samaritana protege do sagaz invasor.
Dançamos ao ritmo do coração. Somos guerreiras do Amor!”



No dia anterior ao combate, a Trofa já tinha o destino marcado. Vou contar o incidente: Recolhido na sua tenda, o general Soult quase queimava as pestanas de tanto estudar o plano do malvado Bonaparte. Lá fora, escutavam-se outras canções, entoadas pelos militares franceses.
“Como é que se faz para ganhar a terra? Pela guerra, pela guerra.
Como é que se faz para passar o Ave? Pela Barca, Pela Barca.
Vamos atravessar o rio no nosso caminho e conquistar o Porto, cada vez mais pertinho.”



Soult não queria que nada falhasse e, por isso, observava minuciosamente o mapa da Trofa, quando escutou um soldado dirigir-lhe a palavra:
- Senhor general, permita-me, mas tem aí uma pestana...
Esticou o braço e pousou os dedos na bochecha vermelha de Soult.
- Aqui está ela.
O francês, enfadado, começou a refilar, mas o soldado agarrou a dita pestana, apertou-a entre os dedos e fitou profundamente os olhos do general.
- Cima ou baixo?
- Pardon, mas não tenho tempo.


O soldado esboçou um sorriso até ao siso e insistiu:


- Peça um desejo!
Surpreendido, o general começou a dizer:
- Desejo que...
- Não, não pode dizer, monsieur, senão não se realiza.
Soult concentrou-se, como fazia sempre que tomava uma decisão importante. Um desejo... nunca sabia muito bem o que pedir e pôs-se a meditar: umas calças novas? Mas isso teria na mesma, era só mandar vir. Que posso eu querer? Mais moedas de ouro?
É isso! Bem, mas ouro vou ter certamente, assim que conquistar estas terras de Portugal. Já sei! A vitória de Napoleão Bonaparte! Ora, mas isso está garantido. Posso...”
- Então?
O general acordou daquela meditação e os seus olhos poisaram no mapa da Trofa. Era óbvio. “Desejo passar o rio Ave pela Barca da Trofa”, pensou em segredo.- Já está!- Cima ou baixo?


Pelo tempo que tinha demorado a pedir o desejo, o general Soult, supôs que a pestana estivesse já bem colada ao dedo indicador do soldado.
- Cima.
Descolou os dedos e, entusiasmado, procurou a pestana. Mas nada. No dedo oposto, estava a pestana Judiana.
Como ela gostava de pregar partidas, tinha-se enroscado muito bem na curvinha delicada de uma fina linha da impressão digital e ria agora que nem perdida. Ela era bem conhecida por todas as pestanas, por nunca um desejo satisfazer. O general é que não achou piada nenhuma e recolhendo o sorriso, logo se tornou muito conciso:
- Nunca acreditei nestas coisas!
O soldado olhou a pestana e teve a sensação de a ver sorrir, mas não podia ser, pensou e enchendo o peito de ar soprou, fazendo Judiana voar pelo ar.

Mas a história não acaba aqui. Do outro lado do rio, outra pestana cumpria a seu missão. Também ali se dizia a palavra “cima”. Exactamente ao mesmo tempo que subia o dedo do soldado, erguia-se o indicador do camponês, o mesmo que iria fazer explodir o velho canhão contra o exército francês. Só que naquele lado do rio, subia, alegre e vitoriosa a pestana Anete.



E foi assim que o povo unido e corajoso e as pestanas Anete, que cumpre o que promete e Judiana, que está sempre na galhofa, juntos, salvaram a Trofa.

Esta história acaba aqui e eu saboreio agora um suave cair.
Para um desejo realizar, só tens de me encontrar,
jogar “Cima ou baixo?” e adivinhar o que vai sair.

Até já,
Ana Pestana









Ilustrações de João Brilhante Leitão


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